Quem era a pintora e fotógrafa portuense, nascida no Chile, que em criança não suportava as aulas de piano e quando adulta se trajou de Santo António para um autorretrato? Aurélia de Sousa, a mulher artista na vanguarda da sua época, deixou uma vida e obra nada convencionais.
Maria Aurélia Martins de Souza nasceu a 13 de junho de 1866, dia de Santo António, em Valparaíso, Chile, sendo filha de António Martins de Souza e de Olinda Peres, ambos emigrantes portugueses que partiram para o Brasil e o Chile em busca de fazer fortuna na construção do caminho-de-ferro na América do Sul, sendo a quarta dos sete filhos do casal.
Em 1869, com apenas 3 anos de idade, acompanhou o regresso da sua família a Portugal, que se fixou na cidade do Porto e passou a residir na Quinta da China, junto ao rio Douro, tendo a propriedade sido comprada por seu pai com o dinheiro ganho durante a sua emigração. Em 1874, quando Aurélia tinha apenas oito anos, o seu pai faleceu. Após a morte do pai, a sua mãe voltou a casar-se em 1880.
Num clã maioritariamente feminino, Aurélia de Sousa teve, portanto, o espaço suficiente para crescer dona do seu nariz. Aos 27 anos, decide matricular-se na Academia Portuense de Belas-Artes, ainda que a contragosto da progenitora.
“E Aurélia vai. Arrastando Sofia com ela e enfrentando a oposição da mãe sem vacilar, mostrando ser sangue da mesma têmpera do homem que atravessara oceanos à procura de fortuna por um amor verdadeiro, e também da mulher que o desposara no lugar da irmã, engolindo agruras e sem nunca abrir mão do seu território e da vontade de dar às filhas um destino condizente com a sua posição”. (Para que fique claro: o casamento entre os pais de Aurélia deu-se numa circunstância particular. António era um modesto rapaz de Castelo de Paiva que se apaixonou por Emília Perez, menina burguesa de origem madrilena. Para se casarem, a condição era que António enriquecesse, e por isso partiu para o Brasil. No regresso, a fatídica notícia de que a sua noiva tinha morrido; em alternativa, é a sua irmã mais nova, Olinda Perez, então com 15 anos, que ele desposa).
O curso na Academia de Belas-Artes, contudo, não satisfez Aurélia de Sousa na plenitude, tanto que não o chega a concluir quando parte para Paris, em 1899. Foi o cunhado, Vasco Ortigão Sampaio, marido de Maria Estela (a caçula nascida no mar), que patrocinou os seus estudos na Academia Julian. Ali, a entrada de mulheres só fora admitida dois anos antes.
“Um gesto de generosidade excecional” e “feito raro para um ser de condição feminina na estrita sociedade portuguesa do início do século XX”, reflete Ana Soromenho.
Devido à sua saúde frágil, a artista portuguesa passou os últimos anos de sua vida na Quinta da China, onde possuía um atelier e um laboratório de revelação fotográfica. Até à sua morte, continuou a produzir novas obras de carácter mais intimistas, representando maioritariamente cenas do quotidiano, quase sempre interiores, onde a figura feminina estava sempre presente, ora exercendo tarefas do dia a dia ora contemplando o seu redor em silêncio e em paz, reflectindo assim sentimentos como a solidão, a saudade e a memória.
Aurélia de Sousa faleceu no Porto, a 26 de maio de 1922, aos 55 anos de idade. Apesar da causa ser desconhecida, estudos recentes apontam para que tenha sido vítima de tuberculose prolongada. Nunca se casou nem deixou descendência directa, deixando em testamento quase todo o seu espólio para as suas sobrinhas. Encontra-se sepultada no Cemitério do Prado do Repouso, na mesma cidade, em jazigo de família.